segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Adulação e hipocrisia



Hoje fiquei sensível a um tipo de comportamento relacional que podemos classificar de "adulação e hipocrisia". Tal acontece quando alguém se dirige a um outro (sujeito individual e ou coletivo) elogiando para o seduzir e de seguida lança uma armadilha para o condicionar ou pôr à prova. Assim do tipo: "o povo português é um povo inteligente e pacífico, por isso aguenta ser esfolado, desde que o vamos entretendo com paliativos que lhe garantam a sobrevivência ou o alívio da dor provocada pelo sofrimento instalado".
Esta forma de relacionamento tem sobrevivido e prosperado ao longo da história das civilizações e das religiões. O pobre adula o rico para obter as suas benesses, o rico adula o pobre para reforçar a sua submissão, o detentor do poder político elogia os seus partidários e os seus concidadãos para reforçar a sua liderança e conquistar os seus votos, os detentores do poder religioso elogiam a submissa humildade dos crentes para reforçar a sua dependência e a sua adesão emocional.
Se eventualmente e furando a lógica do espetável, alguém denuncia a hipocrisia escondida atrás do elogio sedutor, este deve ser tratado como incómodo, revoltado, marginal, agitador e sempre perigoso. Que se desmotive o pensamento sério, que se vigie a dinâmica do relacionamento, que se calem todas as teologias da libertação, que sejam aniquilados todos os inconformados. "Se sempre foi assim é porque está certo, é o mais conveniente e o que acarreta menores riscos".
O que se passou é que me atiraram à cara do meu pensar, na celebração da liturgia semanal do passado domingo, a célebre passagem do evangelho de Mateus que fala da necessidade de "dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Então poderemos assistir a um mais elevado grau de hipocrisia do que aquele que animava os intervenientes que se dirigiram ao grande Profeta da Galileia? É que Ele mantinha com consistente insistência uma atitude de "denúncia da realidade presente e de anúncio duma nova realidade que estava a chegar" e por isso tinham decidido que deveria ser eliminado. A decisão estava tomada, bastava criar a ocasião, em termos que aparecesse como uma forma de zelosa defesa do bem comum. Os detentores do poder religioso deram as mãos aos detentores do poder político, apesar de cada qual detestar o outro, mas servindo-se do outro como trampolim para atingir o seu objetivo. Mas já alguma vez se viu uma hierarquia religiosa aceitar pôr em causa o seu poder sobre a consciência dos seus fiéis, ou alguma estrutura de poder político aceitar sem luta conceder liberdade aos seus subordinados? Até isso acontecer muitos profetas terão ainda de perecer.

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